quinta-feira, 27 de março de 2008

Guimarães Rosa

Uma visita casual reparou que o filho mais velho de seu Florduardo franzia a testa e parecia forcejar para ver as coisas. Era como se a criança mirasse sempre uma parede de névoa. "Por que aperta os olhos assim? Não é limpo da vista?", comentou o visitante, antes de tirar seus óculos e colocá-los no menino. "Olha, agora." Num repente, uma realidade nova e diferente se abriu para João Guimarães Rosa, ou Joãozinho, como os familiares o chamavam. Agora ele via os grãozinhos de areia, as pedrinhas, os insetos passeando no chão, as árvores e as caras das pessoas. "Os buritis! As formiguinhas! Que lindo!" Os óculos revelaram ao garoto a exuberância do mundo natural, um esplendor que iria impregnar e transfigurar a paisagem rude do sertão de Minas Gerais, cenário de seus romances monumentais. Habituado a pegar as coisas para trazê-las até junto dos olhos, Joãozito naquele dia descobriu que era míope. Ninguém sabia. Pudera, não tinha oculista em Cordisburgo. Era uma fatia de um Brasil intocado, um cafundó de Minas, onde o escritor nasceu a 27 de junho de 1908.

Tropas de boiadeiros
Em Cordisburgo, também não havia luz elétrica. Joãozito era pego dormindo em sacos de arroz, com um livro agarrado ao peito e uma vela acesa ao lado, no depósito do armazém do pai, que abastecia as tropas de boiadeiros que varavam a imensidão. No final do século XIX, o avô materno do escritor, dono de terras na região, próxima ao sertão de Minas, mandara roçar uma rua para construir casas para cada um dos filhos. Nenhum deles criou raízes naquela vasta porção do nada, exceto Chiquitita, ou Maria Francisca, que se encantou pelos olhos azuis de Florduardo.

Guimarães Rosa era o filho mais velho do casal e adorava puxar sabugos de milho como se fossem boizinhos de carro. Dos sete aos 14 anos, colecionou borboletas e formigas em vidros. Seu interesse pela História Natural o levava também a alterar o curso dos fiozinhos d'água que vinham do trabalho árduo das lavadeiras. Cada fiozinho era um rio, Danúbio ou São Francisco, e passava por cidades imaginárias. "Um dia hei de escrever um tratado de brinquedos para meninos quietos", prometeu, certa vez.

Deliciava-se com idiomas. Aprendeu sete, incluindo russo, japonês e esperanto. Já estudava Medicina quando se apaixonou por uma colegial de 16 anos, Lygia, futura esposa, em Belo Horizonte. Ia buscá-la na porta da escola. "Que coincidência! Estava passando agora." As coleguinhas de Lygia brincavam: "O Sr. Coincidência já chegou?" Fez o parto da primeira filha, Vilma, mas a carreira de médico não prosperou. Fez concurso para o Itamaraty e virou diplomata.

Viajou para Hamburgo, na Alemanha, nomeado cônsul-adjunto. A idéia era buscar a família, mas dois motivos o fizeram mudar de opinião. Estourou a Segunda Guerra Mundial e, o mais grave, ele estava perdidamente apaixonado pela datilógrafa do consulado, Aracy. "No dia em que voltou, não fui ao colégio para esperá-lo no porto. Olhava, olhava, e não via papai. Eram todos iguais, de óculos", contou a ISTOÉ Agnes, a filha mais nova. A mãe mentiu que ele não podia voltar ao convívio familiar porque, como diplomata, era portador de segredos de guerra. Precisava ficar incomunicável. Na verdade, a separação do casal era irremediável. Ele assumiria ainda uma terceira paixão, Chiquita Marcondes Bernardes. Era um homem que seguia seus instintos.

Em Grande sertão: veredas, sua principal obra, narra o amor do vaqueiro Riobaldo por Diadorim, mulher que se faz passar por homem para participar das vaquejadas. Descreve fauna, flora e topografia da paisagem sertaneja em minúcias. Além de viajar ao sertão para colher relatos de vaqueiros, baseou-se também nas lendas que o pai contava ao voltar de caçadas na região. Fazia certo mistério, contudo, para esclarecer a fonte de sua inspiração, segundo afirmou a ISTOÉ a filha mais velha, Vilma. Quando ela lhe perguntou se conhecia, de fato, o sertão, respondeu: "Nunca estive lá. Meu sertão é metafísico." Morreu a 19 de novembro de 1967. Três dias antes, ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras, havia dito: "As pessoas não morrem, ficam encantadas."

VOCÊ SABIA?
Médico recém-formado, trabalhou em lugarejos que não constavam no mapa. Cavalgava a noite inteira para atender a pacientes que viviam em longíquas fazendas. As consultas eram pagas com bolo, pudim, galinha e ovos. Sentia-se culpado quando os pacientes morriam. Acabou abandonando a profissão. "Não tinha vocação. Quase desmaiava ao ver sangue", conta Agnes, a filha mais nova.

OBRA-PRIMA:
· Sagarana (1946)
· Corpo de baile (1956)
· Grande sertão: veredas (1956)
· Tutaméia (terceiras estórias) (1967)

Fonte: http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/literatura/lit6.htm

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