domingo, 23 de março de 2008

Érico Veríssimo

De madrugada, bateram à porta da farmácia com um homem gravemente ferido, vítima de alguma brutalidade da polícia. Érico Veríssimo era filho do dono da botica e devia ter uns 14 anos, se tanto. Foi arrastado às pressas para segurar a lâmpada à cabeceira da mesa de operação num galpão no fundo do quintal. A primeira coisa que chamou sua atenção foi o polegar decepado, preso à mão do desconhecido só pelo tendão. Um golpe de adaga havia descolado parte do couro cabeludo. Mas o ferimento mais horripilante era um talho de navalha que rasgara a face do lábio até a orelha. Naquela noite nasceu em mim o sentimento de justiça e repugnância pela violência. Continuei firme onde estava", contaria ele muito tempo depois. "Tem-me animado até hoje a idéia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades é acender sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Se não tivermos lâmpada elétrica, acendamos nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como sinal de que não desertamos nosso posto."

A farmácia Brasileira era o ponto de encontro de vadios e aposentados em Cruz Alta (RS), onde Érico Veríssimo nasceu a 17 de dezembro de 1905. O prático aviava as receitas "em meio duma algazarra e de um vaivém de feira", contava Érico. Homens agarravam criadas atrás das portas, vira-latas praticavam sexo no quintal, onde ficava a sala de cirurgia de um médico italiano "com voz de barítono e barba castanha que lhe dava um ar de conde de opereta". A família vivia numa casa colada à farmácia. Uma vez um gaiato largou um rim deformado por um tumor que acabara de ser extirpado na soleira da porta da cozinha. Cenas de Goya e Bosch se passavam diante dos olhos opacos "duma melancolia de bugre" do menino.

O pai, Sebastião, cultivava o comer e o beber bem, gravatas e roupas bonitas e, sobretudo, a arte de fazer amor. "Mulher para ele era doença, não havia hora ou lugar", dizia Érico. Sebastião gastava tudo o que ganhava na farmácia com a boemia. Quando a farmácia faliu, que passou a sustentar a casa foi Abeghail, ou dona Bega, mãe do escritor, encurvada sobre a máquina de costurar Singer.

À procura do pai
Numa noite de dezembro de 1922, cansada das estrepolias extra-conjugais do marido, dona Bega mandou um bilhetinho para Érico: "Vou embora. Vens comigo?" Ele foi. "Considerando a época e a cidade, foi um ato de admirável coragem moral." Érico escreveu ao pai pedindo que se afastasse para não mais atormentar a mãe. O velho o chamou num café: "Rasga essa carta. Faz de conta que não a escreveste." Ele rasgou. Em 1930, Sebastião foi para São Paulo chamado por revolucionários. "Que pena! Esqueci a linguiça frita que preparei para a viagem", lembrou ele, na despedida, na estação de Cruz Alta. Érico embarcou num táxi Ford-de-bigode e apanhou rápido a linguiça. Quando voltou, o trem já se pusera em movimento e o pai estava na plataforma do último vagão. Correu para lhe entregar o pacote e, respiração ofegante, viu a figura paterna sumir, com uma das mãos ele acenava, com a outra apertava contra o peito a linguiça. Nunca mais o viu. Sebastião morreu três anos depois de derrame cerebral, na capital paulsita.

A literatura para Érico foi a procura do pai e da casa perdidos. Era um escritor cosmopolita a ponto de plantar na provincianíssima Porto Alegre de 1934 um edifício de 34 andares, em Olhai os lírios do campo, arranha-céu que só virou realidade 25 anos depois. Não sabia montar a cavalo e, perguntado se usava bombachas, respondeu: "Não aprecio carnaval". Mas escreveu a mais bela saga da colonização gaúcha, O Tempo e o vento, e durante décadas foi um dos raros escritores brasileiros a sobreviver do seu ofício.

Casou com Mafalda, com quem teve dois filhos (Clarissa e o escritor Luís Fernando). Faleceu a 28 de novembro de 1975 ao sofrer o segundo enfarte. Nos anos 70, o casal caminhava de manhã, de braço dado, nas colinas do bairro Petrópolis, em Porto Alegre, com passos de "velhas inglesas, parando a qualquer pretexto", a conselho do cardiologista. À tarde, Érico escrevia no porão da casa. Mafalda, sentada na poltrona ao lado, fazia tricô ou bordado, em silêncio absoluto, cúmplice e companheira. "Era a nossa vidinha", contou ela a ISTOÉ.

VOCÊ SABIA?
Era quase tão taciturno quanto o filho Luís Fernado, também escritor. Numa viagem de trem a Cruz Alta, Érico fez uma pergunta que o filho respondeu quatro horas depois, quando chegavam à estação final.

OBRA-PRIMA:
· Clarissa (1933)
· Caminhos cruzados (1935)
· O tempo e o vento, em três volumes (de 1949 a 1962)
· O senhor embaixador (1964)
· Incidente em Antares (1971)

Fonte: http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/literatura/lit5.htm

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