quarta-feira, 30 de abril de 2008

Clarice Lispector


É sabido que, quanto mais dissecado, mais inatingível se revela o mistério último das coisas. Que mistério tem Clarice? O olho violeta espeta como espada sem revelar a resposta. A pele alva de ucraniana, a boca pintada com batom cor de carne, um traço louro quase imperceptível nas sobrancelhas, o rosto anguloso desenhado a bico de pena, o corpo esguio de pantera, afinal, onde está o fundo da verdade angustiada de Clarice? Sensibilidade à flor da pele, tinha a aparência frágil de uma feiticeira assustada com os próprios poderes. Essa hipótese ganha força se levarmos em conta que participou, em 1975, de um congresso de bruxaria em Bogotá, na Colômbia, mas ela voltou reclamando de tédio e dor de cabeça. "Eu peço a vocês para não ouvirem só com o raciocínio porque, se tentarem apenas raciocinar, tudo o que vai ser dito escapará ao entendimento", dizia. É provável que tenha sido apenas uma fada a segurar a varinha de condão com a mão mutilada (incendiou o quarto ao dormir com um toco de cigarro aceso entre os dedos, em 1966), abrindo portas para mundos mágicos, ao mesmo tempo maravilhosos e sombrios, dilacerados e solitários.

Diz a lenda russa que, uma vez enferma, a mulher alcança a cura engravidando. Foi por isso que Pinkas e Mania Lispector, casal de judeus ucranianos, conceberam Clarice. Mania estava paralítica, possivelmente vítima do mal de Parkinson. "Então, fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado." Clarice Lispector nasceu a 10 de dezembro de 1920 na aldeia de Tchetchelnik na Ucrânia (na época, parte do território da Rússia), próximo à fronteira com a Moldávia, em plena rota de fuga.

Ladrões cossacos
A família judia escapava da perseguição do governo russo. A travessia de alto risco durou dois anos. Havia assaltantes cossacos espreitando na estrada e os refugiados escondiam as jóias dentro dos trapos que usavam como roupas. Pinkas arrumou algum dinheiro fazendo sabão até chegar a Budapeste, na Romênia, quando conseguiu visto no consulado da Rússia. Embarcaram no vapor Cuyabá, em Hamburgo, na Alemanha, dividindo com outros 25 imigrantes o balanço das ondas no porão da terceira classe.

No Recife, o pai ganhou a vida no lombo de um burro, como mascate. No início, almoço era laranja e pão. Com seis anos, Clarice inventava histórias que não tinham fim. Quando atingia um ponto em que era impossível prosseguir - todos os personagens mortos, por exemplo - ela dizia: "Não estavam bem mortos", e recomeçava. Pensava que os livros nasciam espontaneamente, como bichos e árvores. Ao saber que eram feitos por escritores, quis ser um deles. A mãe faleceu em 1930. O pai se foi dez anos depois, quando já estavam no Rio de Janeiro, onde Clarice iniciou a carreira literária. Seu destino era nômade. Casou com o diplomata Maury Gurgel Valente, com quem teve dois filhos (Pedro e Paulo) e correu o mundo. Viveram em Nápoles (Itália), Berna (Suíça) e Washington (Estados Unidos), até ela se separar e fincar âncora no Leme, na zona sul do Rio, em 1959. "Era fiel a seus sentimentos, acima de tudo", afirma a biógrafa Teresa Ferreira.

Internada com obstrução intestinal, a caminho do hospital, afirmou: "Vamos brincar de faz-de-conta. Não estamos indo para o hospital, eu não estou doente e nós estamos indo para Paris." O motorista do táxi virou-se: "Posso ir junto?" "Pode levar a namorada também", respondeu Clarice. Tinha um adenocarcinoma de ovário, o caso era irremediável. Em 8 de dezembro de 1977, vomitou sangue e tentou sair do quarto, mas foi barrada por uma enfermeira. "Você acaba de matar o meu personagem", disse Clarice. Morreu na manhã seguinte. Ainda ditou para a amiga Olga: "Eu, eu, se não me falha a memória, morrerei." Ficou o rastro do cometa, o pó das estrelas.

VOCÊ SABIA?
Era solitária e tinha crises de insônia. Ligava para os amigos e dizia coisas perturbadoras. Imprevisível, era comum ser convidada para jantar e ir embora antes de a comida ser servida.

OBRA-PRIMA:
· Perto do coração selvagem (1943)
· Laços de família (1960)
· A maçã no escuro (1961)
· A paixão segundo G. H. (1964)
· A via crucis do corpo (1974)

Fonte: http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/literatura/lit12.htm

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