
Não é preciso muito esforço para arrancar um sorriso largo de Rachel de Queiroz. Os dentes perfeitos aparecem diante de qualquer comentário, desde que sincero. Como há alguns anos, no Recife. O dramaturgo Ariano Suassuna resolveu enumerar as qualidades da escritora na frente dos amigos. "Você é a pessoa de que eu mais gosto no mundo", disse. Mas completou: "Depois de minha mãe, de minha irmã..." A lista começou a aumentar e sabe lá onde ia parar não fosse o comentário da escritora: "Assim não vale, já estou em sexto lugar!" Se rir ao lado de Rachel é tarefa fácil, ocorre o inverso para tirar dela um auto-elogio. "Eu, uma velha do sertão nordestino?", assustou-se ao saber que havia sido escolhida pelos leitores de ISTOÉ como uma das brasileiras do século na literatura. Que vem do sertão, isso é sabido. Filha de fazendeiros, nasceu em Fortaleza, a 17 de novembro de 1910. E criou-se entre a capital e o interior do Ceará, nas terras da família. Mas velha, não. A disposição física não delata os 88 anos. O segredo da juventude? Rachel nunca fez exercícios físicos regulares. Devido à tendência a engordar, come bastante verdura, "embora deteste". E foi nadadora de açude, como gosta de ressaltar.
Fugindo do PC
A inspiração literária se manifestou cedo. Aos 20 anos, tinha escrito O quinze, um de seus principais romances. No início da década de 30, filiou-se ao Partido Comunista. No Rio de Janeiro, Rachel entregou os originais do segundo livro ao Partidão. Passou-se quase um mês até que alguém do PC a levasse para um armazém abandonado no cais do porto. Três diretores concluíram que João Miguel não poderia ser publicado sem importantes modificações. "Eu não reconheço nos companheiros condições literárias para opinarem sobre minha obra", contestou Rachel, pegando os originais e dando no pé. Morrendo de medo, tomou um bonde que, por sorte, deixava o ponto no momento da fuga. Mesmo desvinculada do PC (considerava-se trotskista), acabou presa algumas vezes. Todas por poucos dias, sem sofre maus-tratos. Uma delas foi num comício, em 1932. Além do constrangimento de dormir no xadrez, dividiu a cela com duas prostitutas, que confundiram as bolas e trataram de aconselhar: "Você, que está começando na vida, cuidado. Não vá se apaixonar. Também não pense em se regenerar."
Casou-se duas vezes. A primeira união se diluiu com o trauma da perda prematura da filha. Depois veio o casamento com um médico goiano, em 1939. Não tiveram filhos, mas Rachel tem bisnetos. É que ajudou a criar a irmã caçula, Maria Luíza, 16 anos mais jovem. São amigas, irmãs, mas mantêm uma relação de mãe e filha. Maria Luíza lhe deu dois "netos" e dois "bisnetos" (o mais novo é Pedro, nove meses).
A escritora, que colaborou com a revista Cruzeiro entre 1945 e 1975, e ganha R$ 600 de aposentadoria, já morou em várias capitais. Viúva, hoje vive no edifício Rachel de Queiroz, no Leblon, Rio de Janeiro. Quando o marido comprou o apartamento, os entusiasmados moradores se reuniram em segredo e fizeram a homenagem. Adoram a vizinha e nem reclamam dos gritos de gol da apaixonada vascaína: "Fico de cabeça inchada se o Vasco perde", afirma Rachel, também torcedora do Ceará. Ela conta que quando se associou ao clube carioca ouviu de um diretor: "Já éramos uma potência futebolística, agora somos uma potência intelectual." A rotina pacata de Rachel é quebrada pelo encontro das quintas-feiras na Academia Brasileira de Letras. Duas vezes por ano, passa pelo menos 20 dias na fazenda Não me deixes, no sertão do Ceará.
Os olhos míopes e cansados suportam a crônica semanal que ainda escreve, mas já não permitem a leitura por mais de uma hora seguida. "Escrever, para mim, é um trabalho lento, fatigante, penoso. Se eu morrer agora, você não vai encontrar uma linha inédita", diz. Ela garante que não pretende lançar mais nenhum romance, que a carreira literária está praticamente encerrada. Praticamente, porque Rachel, a cozinheira especialista em feijoada e arroz de carneiro, quer realizar um antigo desejo: publicar um livro com os melhores pratos do Nordeste. Já tem até nome: Receitas do não me deixes.
VOCÊ SABIA?
Aos 20 anos, já era jornalista profissional no Ceará e arranjou um emprego como professora interina. Com um salário razoável, comprou um carro, um Overland de quarta ou quinta mão. Nas primeiras lições de direção, quase matou o pai, que estava na frente do automóvel. Ele fez Rachel jurar que não ia mais tentar dirigir, pois "além de louca, era cega". Hoje a escritora tem motorista particular. Nunca mais pegou no volante.
OBRA-PRIMA:
· O quinze (1930)
· As três Marias (1939)
· Caminho de pedras (1937)
· Dôra, Doralina (1975)
· Memorial de Maria Moura (1992)
Fonte: http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/literatura/lit9.htm
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