domingo, 16 de março de 2008

Carlos Drummond de Andrade

O homem de óculos, sisudo e magricela apressa o passo até alcançar a criança agarrada ao braço da mãe. De repente, ele puxa a dentadura para fora, arregala os olhos e abre as mãos como se fossem garras. "Olha lá! O monstro!", berra o menino. A mulher, aflita, espia o velhinho, que está outra vez tímido e compenetrado. "Pára com isso, não me faz passar vergonha." Mal ela retoma o andar, o garoto olha para trás e depara com o desconhecido de lentes ferozes. "Socorro!" A essa altura, o vampiro está outra vez carrancudo. "Pára de mentir, moleque! Vai apanhar quando chegar em casa!" A mãe arrasta com força o braço da criança, que arrisca virar-se uma última vez para olhar a terrível criatura dando-lhe um adeuzinho simpático e amistoso.

Carlos Drummond de Andrade, "o poeta de todas as pessoas que nasceram no Brasil no século XX", segundo o diretor de teatro Flávio Rangel, era um urso polar de tão arredio. Mas não renunciava a brincadeiras como a do vampiro, que praticou com os três netos em casa e, depois que eles cresceram, transferiu aos pequenos anônimos que encontrava na rua. Era a combinação exata de um espírito rebelde e chapliniano e um comportamento social irretocável. "Era incapaz de furar uma fila, embora, reconhecido por caixas de bancos e supermercados, tivesse inúmeras oportunidades", contou a ISTOÉ o neto Pedro Augusto, 39 anos. Odiava homenagens e nunca aceitou o título de poeta maior. "O Murilo Mendes mede 1,80m, oito centímetros a mais." Mas, ao conversar com as moças, tinha a mania de repousar a mão no ombro delas, sem malícia. "Aí a mão ia descendo até encontrar a alça do sutiã, que ele agarrava e soltava, fazendo plim, plim, plim...", conta o cartunista Ziraldo.

Filho do fazendeiro Carlos de Paula Andrade e de dona Julieta Augusta, nasceu a 31 de outubro de 1902, em Itabira (MG). O modo de andar com os braços colados às pernas e a cabeça baixa ele aprendeu no colégio de jesuítas de Nova Friburgo (RJ), onde passou dois anos até ser expulso, em 1919, por "insubordinação mental". Estudante de Farmácia, em Belo Horizonte, ajudou a tocar fogo num bonde num protesto contra o aumento do preço do cinema. A piromania nem sempre tinha motivo ideológico. Incendiou um varal de roupas da casa de umas moças. Aí bateu à porta se oferecendo para apagar o fogo. Queria observá-las de camisola fugindo das chamas. Farmacêutico de canudo na mão, negou-se a exercer a profissão para "preservar a saúde dos outros".

Em 1925, casou com Dolores, mas também amou Lygia Fernandes, romance paralelo que durou 35 anos. Carlos tinha 49 anos (25 mais do que Lygia) e era chefe de arquivo do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional quando ela foi contratada como bibliotecária. "A paixão foi fulminante", afirmou ela ao jornalista Geneton Moraes Neto. Era um amor secreto, mas nem tanto. "Todo o Brasil sabia. Dolores era para as lidas domésticas (Carlos não sabia cozinhar um ovo). Lygia, mulher culta, era a verdadeira paixão", garante a italiana Vana Piraccini, dona da Livraria Leonardo da Vinci, no centro do Rio, que ele frequentou durante três décadas. Carlos passava a tarde no apartamento da namorada. Dançava como um cossaco na sala ao encontrá-la triste ou abatida. Ele se agachava, estirava uma perna, encolhia a outra e gritava: "Ei!" Uma vez, a mãe dela, que tinha a chave, fez uma visita inesperada. Lygia saltou da cama e mandou o poeta, em trajes sumários, se esconder atrás da porta. "Mãe, tranque a porta porque estou gripada e não posso tomar vento nas costas", inventou.

A mulher que ele mais amou, entretanto, foi a filha Maria Julieta (o outro filho, Carlos Otávio, nascido em 1927, viveu apenas meia hora), amiga e confidente, que morreu de câncer, em 1987. Carlos ficou desolado e pediu à sua cardiologista que lhe receitasse um "infarto fulminante". Não deu outra. Dias depois, a caminho do hospital, com edema agudo e falência cardíaca, pediu desculpas à médica: "Sou desastrado. Estou atrapalhando sua vida. Tanta coisa para fazer numa sexta-feira à noite." Morreu a 17 de agosto, numa clínica em Botafogo, de mãos dadas com a namorada, Lygia.

VOCÊ SABIA?
Imitava com perfeição a assinatura dos outros. Falsificou a do chefe durante anos para lhe poupar trabalho. Ninguém notou. Tinha a mania de picotar papel e tecidos. "Se não fizer isso, saio matando gente pela rua." Estraçalhou uma camisa nova em folha do neto. "Experimentei, ficou apertada, achei que tinha comprado o número errado. Mas não se impressione, amanhã lhe dou outra igualzinha".

OBRA-PRIMA:
· Brejo das almas (1934)
· Sentimento do mundo (1940)
· A rosa do povo (1945)
· Fazendeiro do ar (1954)
· Boitempo (1968)
· As impurezas do branco (1973)

Fonte: http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/literatura/lit2.htm

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