Os funcionários do cais do porto do Rio de Janeiro já estavam acostumados com a cena. Quando um velho bem vestido, de óculos finos e barba saliente, começasse a sentir "umas coisas esquisitas", como costumava dizer, era hora de levá-lo às pressas para o sobrado charmoso da rua Cosme Velho. Depois de babar, dormir um pouco, dois ou três copos de água fria jogados no rosto, Machado de Assis despertava novamente e com a sua habitual timidez perguntava a Carolina, sua esposa: "Alguém me viu assim?"
Gago e epiléptico desde menino, com problemas intestinais e na visão, o escritor vencera a origem humilde, que procurava disfarçar com os trajes conservadores e o ar de lorde inglês, e se tornara unanimidade nacional ainda em vida. Ou quase isso. Para o crítico sergipano Sílvio Romero, Machado não era nacionalista e sim um autor a ser superado pelo então jovem e promissor Tobias Barreto. O crítico Araripe Jr. foi mais longe. Escreveu inusitados artigos afirmando que lhe faltava um certo "odor da fêmea". Estupefato pela análise, Machado encontrou Araripe na livraria Garnier, onde batia ponto nos fins de tarde. "Gostei muito dos artigos, meu amigo. Mas tudo, tudo menos ser empulhado." O tempo sepultou os comentários maldosos e equivocados. A obra de Machado de Assis, construída em sua maior parte no século XIX, iluminou as gerações futuras. É ainda hoje um mestre inigualável. "Machado usa as armas da ironia, do humor, uma negatividade cética que não morre nunca", analisa o professor Valentim Facioli, da USP.
Vendedor de balas
Neto de escravos, filho da açoriana Maria Leopoldina Machado e do Pintor de letreiros mulato Francisco José de Assis, o garoto franzino batizado de Joaquim Maria nasceu a 21 de junho de 1839, no morro do Livramento, no Rio de Janeiro. A única irmã morreu prematuramente. Machado passava os dias entre o casebre dos pais e a fidalguia do casarão de dona Maria José Mendonça Barroso, sua madrinha. As histórias da juventude da mãe na Ilha São Miguel e a descrição das festas aristocráticas tornaram o mulatinho um leitor contumaz.
As dificuldades financeiras da juventude fizeram de Machado um sujeito sempre em busca da superação. Não foi fácil. O primeiro emprego, como caixeiro de uma papelaria, durou três dias. Com a morte da mãe, mudou-se para o bairro de São Cristóvão e ganhou madrasta. Maria Inês era a cozinheira de um colégio burguês e, nas horas vagas, fazia balas e doces. Dava uma cestinha a Machado, que ficava incumbido de vender os quitutes. Numa das andanças, entrou na padaria de uma certa madame Gallot. Ela e o forneiro, ambos franceses, gostaram tanto do menino que lhe ensinaram seu idioma. Um conhecimento precioso que ele aperfeiçoou sozinho e lhe permitiu traduzir Victor Hugo e Lamartine.
Morto o pai, a madrasta o fez coroinha da Igreja de Lampadosa. Embora preferisse ler a rezar, Machado aceitou ajudar nas missas. No trajeto do trabalho, namorava os mostruários da livraria do editor Francisco de Paula Brito. Impressionava-se com as discussões travadas entre os jovens escritores da época. Um dia venceu a timidez e resolveu entrar. E do meio literário não saiu mais. Acolhido por todos, logo passou a colaborar com poemas para A Marmota, o jornal de Paula Brito. Em 1856, conseguiu lugar como tipógrafo na Imprensa Nacional. Quando o chefe não estava olhando, dedicava à leitura as horas do trabalho. Funcionário que não era exemplar merecia uma reprimenda, e Machado foi parar na sala do diretor da Imprensa. Em vez de bronca, acabou premiado com um aumento no salário. O diretor era Manuel Antônio de Almeida, autor do clássico Memórias de um Sargento de Milícias. Via em Machado um garoto dedicado, de futuro brilhante.
A convivência com os literatos o levaram a colaborar em jornais e revistas. A carreira de funcionário público no Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas lhe garantia mais alguns trocados. Mas o escritor polido, gago, de pequena estatura, não era irresistível, por assim dizer. Machado chegava aos 28 anos, em 1867, conceituado e reconhecido, porém solteirão. É aí que o amigo poeta Faustino Xavier de Novais começa a dar sinais de insanidade mental. Machado vai visitá-lo e depara com sua irmã, uma recém-chegada imigrante portuguesa. Três anos mais velha, culta e versada em gramática, Carolina também não era um primor de beleza para os padrões atuais. "Mas para a época ela era um verdadeiro avião", ponderou a ISTOÉ a sobrinha-neta do casal, Ruth Leitão de Carvalho Lima, 85 anos. Na cabeceira do enfermo Faustino, os dois se encontravam num amor proibido pela família Novais, que não admitia o casamento com um mulato. O escritor tanto fez que, pouco depois da morte do amigo, casaram-se, em 1869. "Não estou pedindo licença, estou comunicando meu casamento", disse Carolina aos irmãos, cansada das censuras.
Resolvidos os problemas amorosos, intensificou sua produção literária. Levantava por volta de cinco horas para rabiscar as primeiras linhas do dia. Deixava os textos inacabados sobre a mesa e, muitas vezes, era Carolina quem os corrigia e retocava. Às dez da manhã seguia para a repartição pública. Deslocando-se de bonde, à tarde costumava entrar na livraria Garnier, ponto de encontro de escritores e editores e onde especulava a criação de uma entidade para reunir os intelectuais da época. Estava lançada a idéia da Academia Brasileira de Letras (ABL), fundada em 1896 tendo Machado como presidente. Arnaldo Niskier, atual presidente da ABL, informa que até o fim do ano pretende inaugurar na Academia um espaço dedicado ao autor de Memóras póstumas de Brás Cubas, marco do realismo brasileiro, com parte de seus móveis, objetos e até um cachorro São Bernardo de madeira que mantinha na porta de casa para receber os visitantes com um gozador "comporte-se, senão ele morde".
Machado consolidou sua entrada na galeria dos maiores escritores do século com a publicação de Dom Casmurro. A obra percorreu o mundo. Completa 100 anos em 1999, com o mesmo dilema: Capitu traiu ou não traiu Bentinho? "Trocar insultos sobre isso é passatempo. A solução é impossível de se achar", afirmou a ISTOÉ o crítico literário inglês John Gledson, para quem o livro é uma chave para entender o Brasil no século XIX.
O homem que jamais saiu do Estado do Rio de Janeiro começou a perder a vida com a morte da esposa. Carolina escondeu de Machado as intensas dores de estômago, agravadas pela receita errada fornecida por um farmacêutico. Morreu em 1904, deixando-o atordoado. Durante anos, colocava o prato para a mulher, nas refeições. Também manteve intacta a escova de cabelo, com os fios dourados. As convulsões se amiudavam, já não bastavam os copos de água fria.
Terceiro milênio
A literatura ainda lhe deu algum alento. Estudava grego para se distrair. Já muito doente, licenciou-se do cargo de diretor de contabilidade do Ministério da Indústria. Sem filhos nem parentes próximos, o bruxo do Cosme Velho não resistia às úlceras na língua, transformadas em câncer por causa das mordidas durante as crises de epilepsia. Ainda perguntaram se ele queria que chamassem um padre para lhe dar a extrema-unção. O ex-coroinha, que não entrava na igreja desde o casamento, foi categórico: "Isso seria uma hipocrisia." Deixou o mundo em 29 de setembro de 1908. "Machado de Assis é o escritor brasileiro do terceiro milênio", arriscou o presidente da ABL, Arnaldo Niskier. O tempo dirá se ele tem razão.
VOCÊ SABIA?
Enquanto escrevia Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis foi acometido por uma de suas piores crises intestinais, com complicações para sua frágil visão. Os médicos recomendaram três meses de descanso em Petrópolis. Sem poder ler nem redigir, ditou grande parte do romance para a esposa, Carolina.
VOCÊ SABIA?
Presidente da Academia Brasileira de Letras, era quem decidia o futuro dos pretendentes a uma vaga. Vetou a entrada na ABL do poeta Emilio Meneses. O motivo: ele era boêmio demais e mancharia a imagem da entidade. Por outro lado, deu uma cadeira a Graça Aranha, sem que tivesse escrito qualquer livro. Aranha, futuro autor de Canaã, trabalhava como secretário de um dos melhores amigos de Machado, Joaquim Nabuco.
VOCÊ SABIA?
Demorou para se estabilizar financeiramente, mas não teve a mesma dificuldade para adquirir hábitos burgueses. Abominava jogos de azar, mas nos de estratégia era um adversário duro de bater. Apaixonado pelo xadrez, conquistou o segundo lugar num torneio do Clube Literário Fluminense, a nata da aristocracia. Empolgou-se e publicou, em 1877, um dos primeiros simulados de xadrez em jornais.
OBRA-PRIMA:
· Contos fluminenses (1870)
· Memórias póstumas de Brás Cubas (1881)
· Quincas Borba (1891)
· Dom Casmurro (1899)
· Esaú e Jacó (1904)
· Memorial de Aires (1908)
Fonte: http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/literatura/lit1.htm
Gago e epiléptico desde menino, com problemas intestinais e na visão, o escritor vencera a origem humilde, que procurava disfarçar com os trajes conservadores e o ar de lorde inglês, e se tornara unanimidade nacional ainda em vida. Ou quase isso. Para o crítico sergipano Sílvio Romero, Machado não era nacionalista e sim um autor a ser superado pelo então jovem e promissor Tobias Barreto. O crítico Araripe Jr. foi mais longe. Escreveu inusitados artigos afirmando que lhe faltava um certo "odor da fêmea". Estupefato pela análise, Machado encontrou Araripe na livraria Garnier, onde batia ponto nos fins de tarde. "Gostei muito dos artigos, meu amigo. Mas tudo, tudo menos ser empulhado." O tempo sepultou os comentários maldosos e equivocados. A obra de Machado de Assis, construída em sua maior parte no século XIX, iluminou as gerações futuras. É ainda hoje um mestre inigualável. "Machado usa as armas da ironia, do humor, uma negatividade cética que não morre nunca", analisa o professor Valentim Facioli, da USP.
Vendedor de balas
Neto de escravos, filho da açoriana Maria Leopoldina Machado e do Pintor de letreiros mulato Francisco José de Assis, o garoto franzino batizado de Joaquim Maria nasceu a 21 de junho de 1839, no morro do Livramento, no Rio de Janeiro. A única irmã morreu prematuramente. Machado passava os dias entre o casebre dos pais e a fidalguia do casarão de dona Maria José Mendonça Barroso, sua madrinha. As histórias da juventude da mãe na Ilha São Miguel e a descrição das festas aristocráticas tornaram o mulatinho um leitor contumaz.
As dificuldades financeiras da juventude fizeram de Machado um sujeito sempre em busca da superação. Não foi fácil. O primeiro emprego, como caixeiro de uma papelaria, durou três dias. Com a morte da mãe, mudou-se para o bairro de São Cristóvão e ganhou madrasta. Maria Inês era a cozinheira de um colégio burguês e, nas horas vagas, fazia balas e doces. Dava uma cestinha a Machado, que ficava incumbido de vender os quitutes. Numa das andanças, entrou na padaria de uma certa madame Gallot. Ela e o forneiro, ambos franceses, gostaram tanto do menino que lhe ensinaram seu idioma. Um conhecimento precioso que ele aperfeiçoou sozinho e lhe permitiu traduzir Victor Hugo e Lamartine.
Morto o pai, a madrasta o fez coroinha da Igreja de Lampadosa. Embora preferisse ler a rezar, Machado aceitou ajudar nas missas. No trajeto do trabalho, namorava os mostruários da livraria do editor Francisco de Paula Brito. Impressionava-se com as discussões travadas entre os jovens escritores da época. Um dia venceu a timidez e resolveu entrar. E do meio literário não saiu mais. Acolhido por todos, logo passou a colaborar com poemas para A Marmota, o jornal de Paula Brito. Em 1856, conseguiu lugar como tipógrafo na Imprensa Nacional. Quando o chefe não estava olhando, dedicava à leitura as horas do trabalho. Funcionário que não era exemplar merecia uma reprimenda, e Machado foi parar na sala do diretor da Imprensa. Em vez de bronca, acabou premiado com um aumento no salário. O diretor era Manuel Antônio de Almeida, autor do clássico Memórias de um Sargento de Milícias. Via em Machado um garoto dedicado, de futuro brilhante.
A convivência com os literatos o levaram a colaborar em jornais e revistas. A carreira de funcionário público no Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas lhe garantia mais alguns trocados. Mas o escritor polido, gago, de pequena estatura, não era irresistível, por assim dizer. Machado chegava aos 28 anos, em 1867, conceituado e reconhecido, porém solteirão. É aí que o amigo poeta Faustino Xavier de Novais começa a dar sinais de insanidade mental. Machado vai visitá-lo e depara com sua irmã, uma recém-chegada imigrante portuguesa. Três anos mais velha, culta e versada em gramática, Carolina também não era um primor de beleza para os padrões atuais. "Mas para a época ela era um verdadeiro avião", ponderou a ISTOÉ a sobrinha-neta do casal, Ruth Leitão de Carvalho Lima, 85 anos. Na cabeceira do enfermo Faustino, os dois se encontravam num amor proibido pela família Novais, que não admitia o casamento com um mulato. O escritor tanto fez que, pouco depois da morte do amigo, casaram-se, em 1869. "Não estou pedindo licença, estou comunicando meu casamento", disse Carolina aos irmãos, cansada das censuras.
Resolvidos os problemas amorosos, intensificou sua produção literária. Levantava por volta de cinco horas para rabiscar as primeiras linhas do dia. Deixava os textos inacabados sobre a mesa e, muitas vezes, era Carolina quem os corrigia e retocava. Às dez da manhã seguia para a repartição pública. Deslocando-se de bonde, à tarde costumava entrar na livraria Garnier, ponto de encontro de escritores e editores e onde especulava a criação de uma entidade para reunir os intelectuais da época. Estava lançada a idéia da Academia Brasileira de Letras (ABL), fundada em 1896 tendo Machado como presidente. Arnaldo Niskier, atual presidente da ABL, informa que até o fim do ano pretende inaugurar na Academia um espaço dedicado ao autor de Memóras póstumas de Brás Cubas, marco do realismo brasileiro, com parte de seus móveis, objetos e até um cachorro São Bernardo de madeira que mantinha na porta de casa para receber os visitantes com um gozador "comporte-se, senão ele morde".
Machado consolidou sua entrada na galeria dos maiores escritores do século com a publicação de Dom Casmurro. A obra percorreu o mundo. Completa 100 anos em 1999, com o mesmo dilema: Capitu traiu ou não traiu Bentinho? "Trocar insultos sobre isso é passatempo. A solução é impossível de se achar", afirmou a ISTOÉ o crítico literário inglês John Gledson, para quem o livro é uma chave para entender o Brasil no século XIX.
O homem que jamais saiu do Estado do Rio de Janeiro começou a perder a vida com a morte da esposa. Carolina escondeu de Machado as intensas dores de estômago, agravadas pela receita errada fornecida por um farmacêutico. Morreu em 1904, deixando-o atordoado. Durante anos, colocava o prato para a mulher, nas refeições. Também manteve intacta a escova de cabelo, com os fios dourados. As convulsões se amiudavam, já não bastavam os copos de água fria.
Terceiro milênio
A literatura ainda lhe deu algum alento. Estudava grego para se distrair. Já muito doente, licenciou-se do cargo de diretor de contabilidade do Ministério da Indústria. Sem filhos nem parentes próximos, o bruxo do Cosme Velho não resistia às úlceras na língua, transformadas em câncer por causa das mordidas durante as crises de epilepsia. Ainda perguntaram se ele queria que chamassem um padre para lhe dar a extrema-unção. O ex-coroinha, que não entrava na igreja desde o casamento, foi categórico: "Isso seria uma hipocrisia." Deixou o mundo em 29 de setembro de 1908. "Machado de Assis é o escritor brasileiro do terceiro milênio", arriscou o presidente da ABL, Arnaldo Niskier. O tempo dirá se ele tem razão.
VOCÊ SABIA?
Enquanto escrevia Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis foi acometido por uma de suas piores crises intestinais, com complicações para sua frágil visão. Os médicos recomendaram três meses de descanso em Petrópolis. Sem poder ler nem redigir, ditou grande parte do romance para a esposa, Carolina.
VOCÊ SABIA?
Presidente da Academia Brasileira de Letras, era quem decidia o futuro dos pretendentes a uma vaga. Vetou a entrada na ABL do poeta Emilio Meneses. O motivo: ele era boêmio demais e mancharia a imagem da entidade. Por outro lado, deu uma cadeira a Graça Aranha, sem que tivesse escrito qualquer livro. Aranha, futuro autor de Canaã, trabalhava como secretário de um dos melhores amigos de Machado, Joaquim Nabuco.
VOCÊ SABIA?
Demorou para se estabilizar financeiramente, mas não teve a mesma dificuldade para adquirir hábitos burgueses. Abominava jogos de azar, mas nos de estratégia era um adversário duro de bater. Apaixonado pelo xadrez, conquistou o segundo lugar num torneio do Clube Literário Fluminense, a nata da aristocracia. Empolgou-se e publicou, em 1877, um dos primeiros simulados de xadrez em jornais.
OBRA-PRIMA:
· Contos fluminenses (1870)
· Memórias póstumas de Brás Cubas (1881)
· Quincas Borba (1891)
· Dom Casmurro (1899)
· Esaú e Jacó (1904)
· Memorial de Aires (1908)
Fonte: http://www.terra.com.br/istoe/biblioteca/brasileiro/literatura/lit1.htm
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